Licitação conjunta ou compra compartilhada
As licitações conjuntas ou compras compartilhadas consistem na realização de processos licitatórios que envolvem mais de um órgão ou entidade com a finalidade de atender a necessidade comum a todos estes órgãos ou entidades.
A compra compartilhada foi definida, pela Instrução Normativa nº 10/2012, do MPOG, como a “contratação para um grupo de participantes previamente estabelecidos, na qual a responsabilidade de condução do processo licitatório e gerenciamento da ata de registro de preços serão de um órgão ou entidade da Administração Pública Federal”.
Tal instituto, contudo, suscita dúvidas, tendo em vista o art. 37, inciso XXI, da Constituição, que impõe o dever geral de licitar. Destaca-se, porém, que seu uso é defendido por especialistas, tendo em vista os possíveis ganhos na economia de escala, redução dos custos de contratação, desburocratização do procedimento, aproveitamento das expertises técnicas das unidades, dentre outros.
Defendendo o uso de tal instituto, Gabriela Lira Borges apontou algumas cautelas que deveriam ser tomadas para sua utilização, quais sejam:
a) elaboração de planejamento (definição da necessidade, identificação da solução, pesquisa de preços) pelas entidades envolvidas; b) comprovação de vantajosidade da medida para todos os que pretenderem tomar parte no certame conjunto; c) formalização de um convênio/termo de cooperação ou instrumento semelhante por parte dos órgãos e/ou entidades interessadas; e d) submissão dos envolvidos ao mesmo conjunto de normas que disciplinam os processos de contratação pública.
Blog Zênite. Licitações conjuntas, dever de licitar e a eficiência na contratação pública. Gabriela Lira Borges. 21/10/2013.
É possível a realização de compras compartilhadas sem a utilização do sistema de registro de preços?
Ocorre, contudo, que a realização de compras compartilhadas, em nosso ordenamento jurídico, vale-se do sistema de registro de preços para sua execução.
Segundo Ronny Charles, apesar de não existir vedação legal expressa à utilização das contratações compartilhadas sem se utilizar do sistema de registro de preços, verifica-se certa omissão de regulamentação. Nesse sentido, destacou que:
A expressão “órgão participante”, por exemplo, como significativa de um órgão ou ente que adiciona sua pretensão contratual à pretensão contratual do órgão gerenciador, é algo característico da sistemática para registro de preços, sem construção similar nas modalidades estranhas a este procedimento auxiliar.
Ronny Charles. Compras compartilhadas sem utilização do SRP. 23/07/2020.
O doutrinador destacava que a características do SRP de permitir contratações compartilhadas, com expressa previsão dos órgãos participantes, não constava da Lei nº 8.666/93, mas de regulamentos específicos. Nessa esteira, não vislumbrava vedação legal que impedisse regulamentação de licitações compartilhadas fora do sistema de registro de preços.
Atualmente a Lei nº 14.133/2021 prevê a figura do órgão ou entidade gerenciador, do órgão ou entidade participante e não participante, além da própria figura da adesão, de forma expressa em seu texto, todas relacionadas ao sistema de registro de preços.
Tal previsão, contudo, não parece contrariar a ideia de que regulamento próprio possa prever a possibilidade de compras compartilhadas em processos licitatórios que não utilizem o procedimento auxiliar de registro de preços. Se assim não for possível, haveria restrição da possibilidade de uso da licitação compartilhada, por exemplo, nos casos em que não for possível se utilizar do registro de preços, como nos serviços continuados, como entendem certas cortes de contas. Nesse sentido:
No que pese a omissao regulamentar, não nos parece absurda a hipótese de reunião de pretensões contratuais em um único certame, mesmo sem a adoção do Sistema de Registro de Preços (SRP). Caso contrário, restringir-se-ia a importante técnica de contratação compartilhada, nas pretensões tidas como incompatíveis com o SRP.
Ronny Charles. Compras compartilhadas sem utilização do SRP. 23/07/2020.
A ampliação dessa possibilidade pode servir a Administração nos casos em que não é possível a utilização do sistema de registro de preços. Tal ampliação, inclusive, pode ser refletida a partir da previsão das compras centralizadas, trazidas pela Lei nº 14.133/2021.
Compras centralizadas
O art. 181, da Lei nº 14.133/2021, destaca que os entes federativos instituirão centrais de compras, com o objetivo de realizar compras em grande escala, para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades daquele diploma legal.
Vale salientar que compras centralizadas é instituto diferente de compras compartilhadas, embora possam ter, na prática, pontos em comum. Nota-se, porém, que a centralização de compras pode resultar em uma compra compartilhada.
A central de compras captaria toda a demanda da Administração, visando um ganho de escala nas constratações. Tal central não exige a criação de pessoa jurídica autônoma.
Experiências práticas: possibilidades e limites das compras compartilhadas
Diversas experiências práticas de compras compartilhadas podem ser mapeadas no país. Seja a realização de políticas públicas na qual o estado federado realiza licitação na qual diversos municípios são órgãos participantes para compra de medicamentos, ou a licitação realizada por um consórcio público que gera um ata de registro de preços nas quais os entes consorciados são órgãos participantes ou poderão aderir àquela ata, muitos exemplos podem ser explorados.
Buscando refletir as possibilidades e limitações na utilização das compras compartilhadas, sem a necessidade de se valer do sistema de registro de preços, vale apresentar os casos mapeados, seja na jurisprudência, em lições doutrinárias ou em casos concretos.
TCE/MG
Inicialmente, destaca-se que o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE/MG), na Consulta nº 885.865, buscou responder, dentre outros, o seguinte questionamento:
c) Para contratação de telefonia móvel, pode a Câmara Municipal se associar à Prefeitura para conseguir uma proposta mais vantajosa, no momento da licitação, com cada um dos dois órgãos celebrando seu próprio contrato com a operadora?
TCE/MG. Consulta n. 885.865. Relator Conselheiro José Alves Viana. 20/11/2013.
Em resposta, o TCE/MG informou que:
b) É possível a realização de processo licitatório conjunto entre órgãos e/ou entidades governamentais, desde que sejam firmados contratos administrativos distintos por cada unidade orçamentária e que sejam observados os princípios da moralidade,
TCE/MG. Consulta n. 885.865. Relator Conselheiro José Alves Viana. 20/11/2013.
Nota-se, entretanto, que a Corte de Contas das alterosas não enfrentou a questão de tal processo licitatório conjunto ser realizado fora do âmbito do sistema de registro de preços.
CNJ
Além disso, é possível observar a edição da Resolução nº 347/2020, do Conselho Nacional de Justiça, dispondo sobre a política de governança das contratações públicas no Poder Judiciário, regulamentou as compras compartilhadas, informando, em seu art. 22, que as compras compartilhadas serão realizadas preferencialmente entre or órgãos do Poder Judiciário, podendo participar órgão e entidades de outros poderes da administração pública federal.
MPU
No Parecer AUDIN-MPU nº 132/2021, destacou-se passagem de resposta de consulta enviada à assessoria jurídica da Procuradoria da República em Roraima, abordando o tema:
23. Desse modo, embora não haja vedação legal para a realização de compras compartilhadas sem a utilização do Sistema de Registro de Preços, não há regulamentação sobre a realização de tal procedimento dessa forma, motivo pelo qual essa Assessoria recomenda a não efetivação da pretendida contratação.
Parecer AUDIN-MPU Nº 132/2021. 26/03/2021.
Em seguida, sob a égide da Lei nº 8.666/93, concluiu que:
(…) consideramos possível a realização de licitações conjuntas por órgãos ou entidades para contratar, de forma apartada, objetos ou serviços similares, a fim de evitar a sobreposição ou duplicidade de esforços para alcance da mesma finalidade com objetivos comuns de contratação e obter um melhor preço, haja vista entendermos haver previsão legal para licitação compartilhada de compras ou serviços em modelo diferenciado do Sistema de Registro de Preços – SRP, independente de regulamentação, consoante se depreende do disposto no §4º do art. 15 da Lei de Licitações e Contratos:
Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:
Parecer AUDIN-MPU Nº 132/2021. 26/03/2021.
(…)
II – ser processadas através de sistema de registro de preços;
(…)
§ 4º A existência de preços registrados não obriga a Administração a firmar
as contratações que deles poderão advir, ficando-lhe facultada a utilização
de outros meios, respeitada a legislação relativa às licitações, sendo
assegurado ao beneficiário do registro preferência em igualdade de
condições. (grifo acrescido)
TJ/MG
Por fim, vale destacar a decisão do TJ/MG, também sob a égide da Lei nº 8.666/93, a qual considerou que a exigência de ato formal de delegação, para fins de celebração conjunta de licitação, excederia o art. 112, da Lei nº 8.666/93. Tal dispositivo, por sua vez, dispõe que quando o objeto do contrato interessar a mais de uma entidade pública, caberá ao órgão contratante, perante a entidade interessada, responder pela sua boa execução, fiscalização e pagamento.
Buscando fundamentar sua decisão, destacou passagem da obra de Marçal Justen Filho. Senão, vejamos:
Eventualmente, uma prestação a ser executada poderá envolver interesse de uma pluralidade de entidades administrativas. Nesse caso, uma única dentre essas entidades promoverá a licitação e firmará o contrato, mesmo quando possam existir convênios ou ajustes entre as entidades. O relacionamento jurídico do particular far-se-á exclusivamente com a entidade que o tiver contratado.
(In Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 14ª ed. São Paulo: Dialética, 2010, comentários ao art. 112, p. 937)
TJ/MG. Processo 1.0011.16.00842-8/003. Relator Desembargador Edgar Penna Amorim. Julgamento 12/11/2019.
Nesse caso, poderia uma entidade administrativa firmar o contrato e executá-lo em benefício das demais. Aqui, certamente, questões de Direito Financeiro devem ser avaliadas.
E então?
Nesse cenário, nos parece possível e, talvez, até uma tendência, a utilização das compras compartilhadas mesmo que sem o uso do sistema de registro de preços. Parece devido, entretanto, que tal utilização seja objeto de regulamentação prévia, a fim de garantir segurança jurídica aos atores envolvidos.