Previsão de dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública
A Lei nº 14.133/2021, dentre as diversas hipóteses de dispensa de licitação, traz os casos de emergência ou calamidade pública. Quanto ao tema, assim é a redação do dispositivo:
Art. 75. É dispensável a licitação:
VIII – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso;
O dispositivo supracitado prevê duas situações em que é dispensável a licitação: os casos de emergência e os casos de calamidade pública. Hoje iremos analisar os casos de emergência, ou melhor, iremos levantar reflexões acerca de como o parecerista, sentado em sua mesa, muitas vezes longe das circunstâncias fáticas, deverá analisar o processo nesses casos.
Inicialmente, cabe destacar que, consoante Justen Filho, tal dispositivo busca dispensar a realização de um certame licitatório, tendo em vista um aspecto temporal: em certos casos, a realização da licitação pode levar um tempo longo demais para o atendimento ao interesse público.
O dispositivo enfocado refere-se aos casos em que o decurso de tempo necessário ao procedimento licitatório normal impediria a adoção de medidas indispensáveis para evitar danos irreparáveis. Quando fosse concluída a licitação, o dano já estaria concretizado.A dispensa de licitação e a contratação imediata representam uma modalidade de atividade acautelatória dos interesses que estão sob a tutela estadual.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. Marçal Justen Filho. 17ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 476.
Dificuldades na definição do que é emergência
Na seqüência, o autor destaca que no caso específico das contratações diretas:
(…) emergência significa necessidade de atendimento imediato a certos interesses. Demora em realizar a prestação produziria risco de sacrifício de valores tutelados pelo ordenamento jurídico. Como a licitação pressupõe certa demora para seu trâmite, submeter a contratação ao processo licitatório propiciaria a concretização do sacrifício a esses valores.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. Marçal Justen Filho. 17ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 476.
O Tribunal de Contas da União (TCU), por sua vez, já destacou que a emergência não pode ser interpretada de forma genérica, devendo ser concreta e imediata:
(…) a emergência preconizada no art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/93, não pode ser interpretada de forma genérica, uma vez que a maioria das áreas de atuação da Administração Pública busca evitar algum dano em potencial, a exemplo dos setores de saúde, segurança e educação. Se considerarmos todas as situações de precariedade na Administração como requisito para a contratação direta por emergência, certamente a dispensa de licitação se tornaria regra geral”. Registrou, ainda, que “não se admite o pressuposto fático teórico como argumento para contratação urgente por dispensa, pois a emergência tem que ser concreta e imediata, a exemplo do desabamento de parte do muro de um presídio, possibilitando a fuga de presos. Nessa hipótese estaria autorizada a contratação por dispensa, apenas para as obras e serviços necessários à contenção da situação emergencial, sem prejuízo de realizar processo licitatório para reformar todo o muro do presídio à posteriori.
TCU, Acórdão n° 300/2004, Plenário, Rel. Min. Ubiratan Aguiar, j. em 24.03.2004.
Citando Marçal Justen Filho, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE/MG) assim dispõe:
(…) Cabe aqui citar Marçal Justen Filho: ‘Em um país de enormes carências como o Brasil, há emergências e urgências permanentes. Não basta alegar a existência de emergência, mas é necessário demonstrar que a contratação se afigura como instrumento efetivo de atendimento a tais carências. (…) A contratação deve ser precedida de todas as justificativas não apenas sobre a emergência, mas sobre a viabilidade concreta de atender à necessidade pública.’ (…) Nestes termos, considero irregular a aquisição de medicamentos sem o processo licitatório.
TCE/MG, Processo Administrativo nº 441802, Rel. Conselheiro Elmo Braz, j. em 15.04.2004.
Ainda tratando dessa imprecisão do conceito de emergência, vale destacar a seguinte passagem de Lucas Rocha Furtado:
Existe, é bem verdade, certa imprecisão na definição, diante de casos concretos, do que realmente seria situação de urgência ou de emergência que esteja a justificar a contratação sem licitação. Lembramos, em primeiro lugar, que toda contratação sem licitação deverá ser minuciosamente motivada. Será sempre o interesse público que irá justificar a contratação direta. Desse modo, diante de situação concreta, deve-se confrontar a obrigação de licitar com os possíveis prejuízos ou riscos que poderão resultar da demora na celebração do contrato diante da realização do procedimento licitatório. Se desse confronto concluir-se que a realização da licitação irá causar ou poderá vir a causar sérios prejuízos à Administração ou sociedade em geral, será autorizada a contratação direta.
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Atlas, 2001. p. 72
O gestor e o conhecimento da situação
A caracterização da emergência se dá num cenário que envolve percepções valorativas e subjetivas. Tratando das circunstâncias fáticas, que transbordam a seara jurídica, afirma o Tribunal de Contas da União (TCU) que:
(…) somente o gestor, por deter a totalidade do conhecimento situacional, pode avaliar com precisão se o problema vivenciado constitui, efetivamente, uma emergência, avaliação esta temerária para o parecerista jurídico, normalmente desvinculado da realidade da gestão.
TCU. AC-2693-50/08-P. Rel. Min. Valmir Campelo.
Ora, é o gestor quem conhece as particularidades e peculiaridades da área em que atua, sendo ele o indivíduo que tem conhecimento da situação fática, possuindo o conjunto de informações necessárias para a caracterização do problema. O parecerista, ao analisar o procedimento, conhece apenas um recorte da realidade, qual seja, aquele apresentado sob a forma de documentos acostados aos autos.
As escolhas deste gestor, contudo, devem ser devidamente justificadas e comprovadas, em conformidade com as normas pertinentes. Nesse sentido, vejamos o precedente do TCE/MG:
(…) Para que a hipótese de emergência possibilite a dispensa de licitação, não basta que o gestor público entenda dessa forma. Necessária se faz a comprovação da situação emergencial, caracterizada pela inadequação do procedimento formal licitatório ao caso concreto. A dispensa por emergência tem lugar quando a situação que a justifica exige da Administração Pública providências rápidas e eficazes para debelar ou, pelo menos, minorar as consequências lesivas à coletividade.
TCE/MG. Denúncia n. 837.367, rel. Conselheiro José Alves Viana, publicação em 1º de Julho de 2016.
Dessa forma, importante notar que cada servidor deve cumprir suas atribuições de forma que a instrução processual dê conta de demonstrar, por meio de documentos e alegações, a situação de emergencia que dá azo à contratação direta por meio de dispensa de licitação nos casos de situação de emergência.