A possibilidade da Administração indicar marcas ou modelos nas licitações

O presente artigo busca fazer uma revisão geral das hipóteses de indicação de marca ou modelo nas licitações. A proposta do texto é tratar de forma exaustiva das hipóteses legais, destacando a construção da jurisprudência e doutrina sobre o tema ao longo do tempo. Assim, o artigo irá tratar dos seguintes tópicos:

Vamos lá?

Ainda sob a égide da Lei nº 8.666/93, o Tribunal de Contas da União já discutia a possibilidade de indicação de marca em um processo licitatório. Aquele diploma legal trazia duas previsões acerca do tema, ambas vedando a indicação. Primeiramente, o art. 7º, §5º:

Art. 7o  As licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços obedecerão ao disposto neste artigo e, em particular, à seguinte seqüência:

§ 5o  É vedada a realização de licitação cujo objeto inclua bens e serviços sem similaridade ou de marcas, características e especificações exclusivas, salvo nos casos em que for tecnicamente justificável, ou ainda quando o fornecimento de tais materiais e serviços for feito sob o regime de administração contratada, previsto e discriminado no ato convocatório.

Em seguida, o art. 15, §7º:

Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:

§ 7o Nas compras deverão ser observadas, ainda:

I – a especificação completa do bem a ser adquirido sem indicação de marca;

Nesse cenário, a partir de alguns precedentes, o TCU editou a Súmula 270, permitindo, de forma excepcional, a indicação de marca nas compras públicas, desde que estritamente necessária para atender exigências de padronização e que houvesse prévia justificação.

SÚMULA TCU 270: Em licitações referentes a compras, inclusive de softwares, é possível a indicação de marca, desde que seja estritamente necessária para atender exigências de padronização e que haja prévia justificação.

Súmula 270, TCU

Além disso, a jurisprudência também já vinha construindo um permissivo para indicação de marca de referência, em determinados casos e atendidas determinadas condições, como veremos adiante.

Com o advento da Nova Lei de Licitações e Contratos, essa tolerância foi positivada no art. 41, da Lei nº 14.133/21. Sendo assim, vejamos:

Art. 41. No caso de licitação que envolva o fornecimento de bens, a Administração poderá excepcionalmente:

I – indicar uma ou mais marcas ou modelos, desde que formalmente justificado, nas seguintes hipóteses:

a) em decorrência da necessidade de padronização do objeto;

b) em decorrência da necessidade de manter a compatibilidade com plataformas e padrões já adotados pela Administração;

c) quando determinada marca ou modelo comercializados por mais de um fornecedor forem os únicos capazes de atender às necessidades do contratante;

d) quando a descrição do objeto a ser licitado puder ser mais bem compreendida pela identificação de determinada marca ou determinado modelo aptos a servir apenas como referência;

Dessa forma, vale analisar cada hipótese trazida pela Lei nº 14.133/2021. Em virtude do histórico, iniciaremos pela hipótese da alínea ‘d’, que se refere à indicação de marca que sirva como referência.

Indicação de marca de referência

A indicação de marca ou modelo apto a servir como referência, nos casos em que a discrição do objeto a ser licitado puder ser mais bem compreendida pela identificação dessa marca ou modelo, já era admitida pela jurisprudência antes mesmo do advento da Nova Lei de Licitações.

Nesse sentido, observa-se decisão do TCE/MG, ainda no panorama da Lei nº 8.666/93:

Denúncia. Indicação de marca. “(…) a denominação da marca serviria apenas para exemplificar a especificação do material. Nesse sentido, a interpretação do Professor Marçal Justen Filho, a qual colaciono, in litteris: ‘Ora, é imperioso que o ato convocatório indique as características relevantes para fins de similaridade. Para tanto, deverá indicar o padrão mínimo de qualidade necessário. Dito de outro modo, a referência a uma marca funcionará como uma mera exemplificação da qualidade mínima admitida.’ (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 11ª edição, São Paulo: Dialética, 2005, pág. 165)”.

TCE. Denúncia nº 747505. Rel. Conselheira Adirene Andrade. Sessão do dia 13/05/2008.

Desse modo, entende-se possível a indicação de marca de referência que funcionará como uma mera exemplificação da qualidade mínima admitida. Tal conduta, contudo, deve ser tomada com a devida cautela, para não resultar em uma preferência subjetiva por uma marca, tampouco resultar em uma limitação à competição. Senão, vejamos:

(…) Para não ferir o princípio da isonomia entre os licitantes, a indicação de marca na identificação do objeto da licitação conforme o único dispositivo da Lei de Licitações que a autoriza, art. 7º, § 5º, deverá amparar-se em motivos de ordem técnica, sem influências pessoais, e que tenham um fundamento científico. A justificativa deve ser documentada por laudos periciais, que deverão fazer parte integrante do processo. Deve-se demonstrar, também, que as características da marca indicada não se encontram em outras marcas e, ainda, que aquelas peculiaridades são essenciais ao interesse público. O que não se admite é a restrição injustificada, porque afeta o princípio basilar da licitação, qual seja, a isonomia entre os interessados.

Pode-se indicar a marca no ato convocatório como forma ou parâmetro de qualidade do objeto para facilitar a sua descrição, acrescentando-se as expressões “ou equivalente”, “ou similar” e “ou de melhor qualidade”, se for o caso. Tal recomendação tem por fundamento a possibilidade de existir um produto novo que apresente características similares e, às vezes, melhores do que o já conhecido. A Administração poderá inserir em seus editais cláusula prevendo a necessidade de a empresa participante do certame demonstrar, por meio de laudo, o desempenho, qualidade e produtividade compatível com o produto similar ou equivalente à marca de referência mencionada.

Não há, portanto, reprovação legal à utilização de marca como meio de identificação do objeto, desde que tal opção tenha sido baseada em características pertinentes ao próprio objeto.

TCE/MG. Processo 849726. Relatora Conselheira Adriene Andrade. Sessão do dia 12/06/2013.

O TCU, por sua vez, entende que a indicação de marca como parâmetro de qualidade pode ser admitida para facilitar a descrição do objeto a ser licitado, desde que seguida das expressões “ou equivalente”, “ou de melhor qualidade”. Sugere-se, nesse caso, a indicação do maior número possível de marcas que atendam à finalidade. Senão, vejamos:

Permite-se menção a marca de referência no edital, como forma ou parâmetro de qualidade para facilitar a descrição do objeto, caso em que se deve necessariamente acrescentar expressões do tipo “ou equivalente”, “ou similar”, “ou de melhor qualidade”, podendo a Administração exigir que a empresa participante do certame demonstra desempenho, qualidade e produtividade compatíveis com a marca de referência mencionda.

TCU. Acórdão 808/2019-Plenário. Relator Walton Alencar Rodrigues.

Além disso, consoante o art. 42, da Lei nº 14.133/21, a indicação de marca/modelo não basta para a exclusão das demais opções de mercado, sendo certa a possibilidade de realização, pelo interessado, de prova de qualidade de produto similar, nos termos ali indicados. Nesse sentido, vejamos:

Art. 42. A prova de qualidade de produto apresentado pelos proponentes como similar ao das marcas eventualmente indicadas no edital será admitida por qualquer um dos seguintes meios:

I – comprovação de que o produto está de acordo com as normas técnicas determinadas pelos órgãos oficiais competentes, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou por outra entidade credenciada pelo Inmetro;

II – declaração de atendimento satisfatório emitida por outro órgão ou entidade de nível federativo equivalente ou superior que tenha adquirido o produto;

III – certificação, certificado, laudo laboratorial ou documento similar que possibilite a aferição da qualidade e da conformidade do produto ou do processo de fabricação, inclusive sob o aspecto ambiental, emitido por instituição oficial competente ou por entidade credenciada.

§ 1º O edital poderá exigir, como condição de aceitabilidade da proposta, certificação de qualidade do produto por instituição credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro).

§ 2º A Administração poderá, nos termos do edital de licitação, oferecer protótipo do objeto pretendido e exigir, na fase de julgamento das propostas, amostras do licitante provisoriamente vencedor, para atender a diligência ou, após o julgamento, como condição para firmar contrato.

§ 3º No interesse da Administração, as amostras a que se refere o § 2º deste artigo poderão ser examinadas por instituição com reputação ético-profissional na especialidade do objeto, previamente indicada no edital.

Dessa forma, a indicação de marca de referência segue permitida, embora de forma excepcional, na Lei nº 14.133/21, devendo serem atendidos os critérios normativos.

Vale salientar, ainda, o apontamento de Marçal Justen Filho acerca dos aspectos que devem ser levados em conta na comparação entre a marca de referência e aquela ofertada pelo licitante. Vejamos:

O problema dessa solução reside na identificação dos aspectos fundamentais para fins de avaliação da similaridade. É evidente que apenas algumas facetas do produto são pertinentes para esses fins. (…)

Em qualquer caso, no entanto, é indispensável determinar o aspecto relevante que conduz à escolha de um produto específico para paradigma de aceitabilidade.

Um exemplo permite compreender o problema. Imagine-se licitação para compra de canetas. Utiliza-se fórmula ‘marca X ou similar’. Suponha-se que um licitante apresenta oferta de caneta cujo desenho industrial é similar, mas que não apresenta as mesmas virtudes no tocante à tinta. É claro que o importante para a Administração não é o design da caneta, mas seus atributos quanto à escrita. Logo, não haverá similaridade entre os dois produtos e a similtude visual deve ser reputada como irrelevante.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentário à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei nº 14.133/2021, 2021, p. 539.

Em seguida, vejamos as demais hipóteses legal, partindo daquela destacada na alínea ‘a’.

Indicação de marca por necessidade de padronização do objeto

No caso da indicação de marca por necessidade de padronização do objeto, a Lei nº 14.133/21 trouxe dispositivo sobre o tema. Nesse caso, será necessário a abertura de um processo administrativo de padronização. Quanto ao tema, assim dispõe o art. 43, da Lei nº 14.133/21:

Art. 43. O processo de padronização deverá conter:

I – parecer técnico sobre o produto, considerados especificações técnicas e estéticas, desempenho, análise de contratações anteriores, custo e condições de manutenção e garantia;

II – despacho motivado da autoridade superior, com a adoção do padrão;

III – síntese da justificativa e descrição sucinta do padrão definido, divulgadas em sítio eletrônico oficial.

§ 1º É permitida a padronização com base em processo de outro órgão ou entidade de nível federativo igual ou superior ao do órgão adquirente, devendo o ato que decidir pela adesão a outra padronização ser devidamente motivado, com indicação da necessidade da Administração e dos riscos decorrentes dessa decisão, e divulgado em sítio eletrônico oficial.

§ 2º As contratações de soluções baseadas em software de uso disseminado serão disciplinadas em regulamento que defina processo de gestão estratégica das contratações desse tipo de solução.

Tal procedimento já era admitido pelo TCU. Nesse sentido, vejamos:

O princípio da padronização não conflita com a vedação de preferência de marca, que não constitui obstáculo à sua adoção, desde que a decisão administrativa, que identifica o produto pela marca, seja circunstanciadamente motivada e demonstre ser essa a opção, em termos técnicos e econômicos, mais vantajosa para a administração.

TCU. Acórdão 1547/2004-Primeira Câmara. Relator: Walton Alencar Rodrigues.

Em seguida, veremos a indicação de marca por necessidade de se manter a compatibilidade com plataformas e padrões já adotados pela Administração.

Indicação de marca por necessidade de se manter a compatibilidade com plataformas e padrões já adotados pela Administração

Tal hipótese se baseia nas situações fáticas nas quais a Administração já conta com tecnologias cuja operacionalidade demanda a utilização de objetos com características específicas, a fim de serem compatíveis com a infraestrutura preexistente.

Indicação de marca em virtude de ser a única capaz de atender ao interesse público

ssa previsão, trazida no art. 41, I, alínea b, da Lei nº 14.133/21 também já havia sido tratada em decisões da Corte de Contas da União, como se observa do precedente abaixo:

A indicação de marca no edital deve estar amparada em razões de ordem técnica, de forma motivada e documentada, que demonstrem ser aquela marca específica a única capaz de satisfazer o interesse público.

TCU. Acórdão 113/2016-Plenário. Relator Bruno Dantas.

Nesse caso, a marca ou modelo devem ser comercializados por mais de um fornecedor, como define a própria alínea b. Tal previsão tem uma razão de ser, uma vez que, no caso de haver apenas um fornecedor, a situação se enquadraria em uma hipótese de inexigibilidade de licitação.

Nessa esteira, pertinente a decisão do TCU que destaca que a exclusividade de marca não comprova os requisitos de inviabilidade de competição para se realizar uma inexigibilidade de licitação. Ora, a marca, que se demonstrou exclusiva, pode ser comercializada por diversos fornecedores, permanecendo, no caso, o caráter competitivo.

Vejamos:

A demonstração de exclusividade de marca não comprova o requisitos de inviabildiade de competição necessário para fundamentar inexigibilidade de licitação.

TCU. Acórdão 568/2009-Primeira Câmara. Relator Marcos Bemquerer.

Vedação à marca

O art. 41, III, Lei nº 14.133/21 traz a possibilidade de se vedar a contratação de marca ou produto, nos seguintes termos:

Art. 41. No caso de licitação que envolva o fornecimento de bens, a Administração poderá excepcionalmente:

III – vedar a contratação de marca ou produto, quando, mediante processo administrativo, restar comprovado que produtos adquiridos e utilizados anteriormente pela Administração não atendem a requisitos indispensáveis ao pleno adimplemento da obrigação contratual;

Como destaca o dispositivo legal, tal vedação somente deve ocorrer após a comprovação do não atendimento aos requisitos indispensáveis ao pleno atendimento da obrigação contratual, que deve ser feita por meio de processo administrativo.

Discutindo a possibilidade dessa restrição à participação de marcas nas licitações, o TCU já havia decidido pela necessidade de se apresentar justificativa formal e técnica. Vejamos:

A restrição quanto a participação de determinadas marcas em licitação deve ser formal e tecnicamente justificada no processo de contratação.

TCU. Acórdão 1695/2011-Plenário. Relator Marcos Bemquerer.

Considerações finais – O caráter excepcional da indicação de marca e a indicação velada

Por fim, destaca-se que embora positivada, a indicação de marca segue sendo medida excepcional que demanda justificativa técnica para sua adoção. Não parece razoável que tal justificativa se limite a apresentação de sucintas alegações em poucas linhas, devendo a Administração se empenhar em demonstrar os argumentos trazidos no processo, a partir de critérios objetivos, bem definidos.

A adoção de tal medida deverá observar os princípios constitucionais da Administração Pública, incluindo o princípio da isonomia e da impessoalidade, de forma que a Administração ampare suas escolhas em razões de ordem técnica, motivada e documentada.

Nessa seara, cabe destacar, ainda, que a indicação velada de marca não é admitida. A indicação velada se dá quando a Administração define como especificações do objeto características únicas de determinado produto ou fabricante.

Sendo assim, vejamos:

O estabelecimento de especificações técnicas idênticas às ofertadas por determinado fabricante, da que resultou a exclusão de todas as outras marcas do bem pretendido, sem justificativa consistente, configura afronta ao disposto no art. 15, §7º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993.

TCU. Acórdão n.º 1.861/2012-Primeira Câmara, TC 029.022/2009-o, rel. Min. José Múcio Monteiro, 10.4.2012.

No mesmo sentido:

A reprodução de especificações técnicas mínimas idênticas às de equipamento de informática de determinada marca, em edital de licitação visando à aquisição desse item, restringe o caráter competitivo do certame, viola o princípio da isonomia e compromete a obtenção da proposta mais vantajosa.

TCU. Acórdão 2005/2012-Plenário. Relator Weder de Oliveira.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima